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Por trás dos uniformes, cargos e funções.

                Joelma

                Joelma é um porre. Caixa de supermercado, aproximadamente 27 anos de idade, loira, óculos de muitos graus, estatura baixa, magra e chata a “dar com pau”. Não sorri, não te olha nos olhos e seu “obrigado, senhor” nunca convence. Para piorar, seu uniforme se reduz a uma camisa cinza-claro, calça cinza-escuro e sapato cinza-chumbo. Joelma é uma pessoa cinza.

                Uma ou duas vezes por semana acabo esbarrando nela quando dou uma passada rápida para comprar leite e pão. Fico contando os segundos para ser atendido rapidamente e, também rapidamente, sumir de lá. Imagino-a em um grupo de amigas com aquela cara fechada. Na verdade, não consigo imaginar que uma pessoa assim tenha muitos amigos.

 

                Seu Francisco

                No prédio da minha tia, trabalha um senhor de aproximadamente 60 anos. Não me lembro seu nome. Para facilitar, vamos chamá-lo de Seu Francisco. É porteiro há anos. Sempre de uniforme azul e óculos com hastes finas e lentes escuras, Seu Francisco é uma simpatia em pessoa. Quando chego lá, nem me pede para aguardar. Já vai abrindo a porta e desejando um ótimo dia com aquele sorriso frouxo, rasgado, cheio de verdade. Certamente, Seu Francisco não tem problemas em casa. Deve abrir muitas portas para a família. Imagino seu filho chegando da faculdade e, prontamente, Seu Francisco surpreendendo-o com a mão na maçaneta, ou, de manhã, quando sua filha acorda, a porta de seu quarto abrindo como um portal. Do outro lado, ele, com seu uniforme azul bem passado e sorriso no olhar: – Bom dia, querida.

                Um estranho conhecido

                Há mais de 10 anos aconteceu algo bem raro comigo. Estava em uma festa do tio do primo do cunhado do sobrinho do meu amigo. Saca aquela festa que você não tem ideia de quem é o aniversariante e nem de como você chegou lá? Mais ou menos quando forma uma aglomeração de amigos e alguém solta um “vamos… é só entrar no carro.. vamos lá!”.

                Como eu já conhecia bem o piloto do Monza 77, entrei.

                Muito bem, estava lá na festa estranha com gente esquisita, curtindo um sanduíche de carne louca com Coca-Cola, quando me deparei com um rapaz com uma cara incrivelmente familiar. Lancei um “Opa!”, mas ele nem reagiu. Parecia que nunca tinha me visto na vida. O pior é que a minha sensação era que o conhecia há muito tempo, mas não tinha a mínima ideia de onde. Acredite, foi a sensação mais estranha do mundo.

                Deixei o sanduíche de lado e fiquei matutando: Quem é esse cara? De onde ele vem? Como se chama?

                Pode parecer neura da minha parte, mas o rosto era muito, mas muito, mas muito conhecido. Como se o visse todos os dias e tinha a obrigação de saber quem era. Fiquei meia hora andando em círculos; parecia o rinoceronte Rômulo nos dias de crise. E foi quase no fim da festa, depois de ter passado por ele umas oito vezes ou dez vezes que caiu a ficha: o cobrador do ônibus. Claro! Óbvio! É por isso que era tão familiar e estranho ao mesmo tempo. Todos os dias olhava para aquele rosto enquanto rodava a catraca.

                Por mais que você me ache estranho – e, pode apostar, muita gente me acha muito estranho -, não conseguia conectar o trabalhador uniformizado com uma pessoa normal curtindo tranquilamente uma festa de bairro (não falei que você ia me achar estranho?). Era um jeito de vê-lo acordando, dormindo e tomando banho como cobrador de ônibus; como se aquela fosse sua essência e verdade. E isso acontecia para qualquer pessoa, cargo ou função. Faltava-me uma mínima sensibilidade; como se uma peça estivesse perdida em meu quebra-cabeças mental.

                E o tempo passou

                Depois de algum tempo comecei a ficar plenamente consciente de que por trás dos trabalhos, cargos e funções, existem pessoas de verdade. Talvez eu fosse o único maluco a pensar assim e precisasse urgentemente elevar meu nível de percepção; talvez tinha mais gente assim por aí. É lindo ver minha esposa com este dom tão apurado. Ela tem a capacidade extra-sensorial de, após cinco minutos de conversa, desmoronar a carcaça de aço de qualquer um.

                Comigo, o processo foi mais lento, mas uma hora a chave virou. Comecei a olhar para as pessoas com outro olhar. Meu mindset mudou. Hoje consigo transpassar a barreira dos olhos, conectar-me com a alma do outro lado e sentir verdadeiramente a pessoa por trás dos uniformes, cargos e funções.

                Na última vez que passei por Joelma, pude sentir a pessoa tímida – e apenas tímida – por trás daquela vestimenta triste. Ela não é um porre e nem mal-educada. Ela é tímida. E como eu sou tonto.

                Nos guardas de trânsito, forço-me a ver que existem pessoas reais por trás da maneira autoritária que se portam. Com alegrias, tristezas, dores, famílias, dúvidas, dívidas e uma porção de amigos. Ontem, no aeroporto, fitei a atendente da Gol e consegui me esquecer da marca e do cargo que carregava. No começo dá trabalho, mas logo fica natural focar na pessoa e apenas na pessoa à sua frente.

                Sabe, ultimamente venho fazendo isso com o padeiro, pedreiro, com o médico, faxineira, com o motorista de Uber e com o taxista também.

                Sinto-me meio babaca por ter tratado tanta gente como um uniforme ambulante. Não, você me entendeu errado. Nunca fui mal-educado, mas minha pequenez não me permitia ver além do que meus olhos enxergavam. Hoje estou aprendendo a transcender a parede imposta por minha mente construída com base em uniformes, cargos e funções. Hoje estou aprendendo a ser mais humano.

                Agora, faz muito mais sentido uma das célebres citações de Abraham Lincoln: “Eu não gosto daquele homem. Preciso conhecê-lo melhor.”

                A propósito, o porteiro não se chama Francisco. Seu nome é Jaime, mora sozinho há trinta anos e nunca teve filhos. Seu o sorriso é verdadeiro e, há tempos, aqueles óculos com hastes finas e lentes escuras aprenderam a ver as pessoas como, um dia, eu hei de enxergar.

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SOBRE
RAFAEL BALTRESCA

Professor e palestrante desde 1999. Formado em Engenharia Eletrônica, iniciou sua carreira dando aulas de cálculo numérico e lógica de programação em escolas especializadas em reforço ao universitário.

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